Estamos na chamada “silly season” aqui no hemisfério norte, onde o calor do verão alimenta os incêndios nas florestas e, pela proximidade das eleições em Portugal, a classe política não se irá expôr a aparecer como estando de férias. Que pena, pois é nesta altura que os titulares dos jornais se tornam mais divertidos, com as coisas mais mirabolantes para chamar a atenção dos seus leitores. É também o meu caso este mês.
Começo por dar voz a um comentário que recebi no nosso canal do Facebook (+6.000 seguidores orgânicos, isto é, todos conseguidos sem publicidade) escrito pelo Jorge Simões Sobre o SNS:
“Chega tretas! O problema dos Hospitais está na deficiente qualidade da gestão de muitos deles. Mesmo não tendo elementos de comparação com os hospitais geridos em PPP, basta comparar custos, meios e resultados destes dois hospitais de idêntica dimensão. Se houver falta pessoal, tal resulta apenas do disparate feito por este governo, com a redução das 40 para as 35h de trabalho semanal. As tais que segundo Centeno não iriam ter aumentos de custo (!!!!!). Sim! precisam-se de gestores competentes que tenham autonomia e que – pelo exemplo – consigam ser líderes e por grande parte dos funcionários a trabalhar melhor, ou seja com mais eficiência, não necessariamente a trabalhar mais que é coisa diferente.
Portanto, acabem com os boys incompetentes e a situação deve melhorar.
Foi aliás esta também a opinião expressado pelo Dr. MANUEL ANTUNES (que foi responsável pela unidade de cirurgia cardiotorácica dos HUC, provavelmente a entidade do SNS com os melhores índices de eficiência) num programa prós e contras / RTP 1.
Além de que segundo as estatísticas, Portugal está bastante acima da média no rácios quanto ao no. de médicos / 1000 habitantes. Portanto e no essencial, apenas necessitamos de gerir e trabalhar melhor.”
Considero uma felicidade extraordinária poder viver num regime em liberdade onde todos os cidadãos têm o direito a expressar as suas opiniões. Mais ainda, quando são esses mesmos cidadãos que são chamados a votar e com isso elegem os políticos que governam o país. E os políticos inteligentes saberão interpretar bem aqui a mensagem.
O paradoxo da gestão em saúde
Existe em Portugal um paradoxo com a gestão em saúde, que passo a explicar. Há 50 anos atrás, ainda antes de surgir o SNS, foi criada a carreira de Administrador Hospitalar uma medida que foi instrumental para que Portugal (a 55ª economia mundial) tenha hoje um Serviço Nacional de Saúde entre os 12 melhores do mundo. Esse saber acumulado pode ser observado nos dias de hoje, nas várias revistas portuguesas de gestão de saúde, que publicam os mais avançados trabalhos de investigação e conhecimento na matéria. Como exemplos este mês, entre muitos outros:
- O artigo de João Alexandre Reis na Revista Portuguesa de Gestão & Saúde, sobre a relação entre a cultura organizacional e o desempenho dos colaboradores, e que mostra como a cultura de uma organização pode fomentar ou prejudicar a inovação e o desempenho, dependendo dos valores que promove.
- A análise crítica das parcerias público-privadas na saúde em Portugal, realizada pela Claudia Parente Rebelo, na revista Gestão Hospitalar, que desde 1983 difunde o melhor e mais atual conhecimento sobre gestão em saúde.
- O inquérito aos utentes do SNS, num artigo publicado pelo João Costa da GfK Metris, que esmiúça claramente as áreas de insatisfação são essencialmente duas – tempos de espera para consultas e admissões. Precisamente aquelas que poderiam ser solucionadas com as Parcerias Público-Privado, que falham pela falta de um bom clima de cooperação entre os parceiros (Estado e o sector privado).
- O estudo da NOVA IMS, no qual o seu coordenador, Pedro Simões Coelho, observa que “O SNS, seja por via da redução do absentismo e por via do aumento da produtividade, terá tido um impacto económico na sociedade que pode ultrapassar os cinco mil milhões de euros. Se pensarmos bem, corresponde a metade do investimento que o SNS fez no próprio ano de 2018.” (in RTP Noticias)
E apesar de toda esta enorme experiência e saber acumulado em gestão de saúde em Portugal, a realidade é que os problemas persistem no seio das organizações de saúde do Estado provocando uma angustiante insatisfação com o SNS que depois se contagia entre os profissionais e os seus pacientes.
Temos que aprender a separar a decisão política, que é uma responsabilidade da ação de um governo, das decisões de gestão das organizações do Estado, que devem ser da responsabilidade de profissionais apolíticos escolhidos com o único critério da sua competência.
Está claro que esta separação tão radical de poderes (governativo vs. gestão) dá arrepios às formações políticas da esquerda portuguesa, que temem que este ‘gestores de nomeação’ sejam como os ditadores de turno que acabam por impor decisões que rebentam com os direito da participação dos trabalhadores na gestão do seu hospital ou centro de saúde e terminando por ser meros agentes da exploração do homem pelo homem. Isto é algo que deve ser equacionado pela nossa sociedade no seu conjunto. Até que ponto é que poderemos criar um novo e inovador estatuto da Função Pública (em Portugal como no Brasil) em que o modelo e as decisões de gestão devam ser obrigatoriamente participadas por todos os implicados, fomentando o trabalho em equipa em saúde, e assentes em novos modelos de organização sociocrática, tal como já ocorre nos países nórdicos e que são absolutamente exemplares nesta matéria? Veja-se aqui o caso do SNS da Suécia.
Que pena que a última grande reforma da Lei de Bases em Saúde, fica tão aquém nesta matéria. Seguramente uma grande oportunidade perdida para a esquerda portuguesa mais centrada na obtenção de efeitos mediáticos junto dos seus eleitores que em qualquer outra coisa. Mas aguardemos pela Presidência da República, que será quem tem a última palavra nesta matéria, e bem poderá remeter para a próxima legislatura a busca de um consenso mais alargado e que contemple igualmente um modelo de financiamento para o SNS. Ideias não faltam aqui e aqui.
A tentação de ser o ‘bom pastor’
Quando vejo os nossos ministros da Saúde serem assediados pelos media por problemas de gestão como sejam as urgências de um determinado hospital e a anunciar medidas que são da responsabilidade da gestão corrente de um hospital ou de uma uma administração regional de saúde, eu pergunto-me: “E isto não estará a roubar tempo a quem deveria estar a tratar dos problemas estruturais que realmente podem impactar de forma estratégica na saúde dos portugueses?”
Para separar os âmbitos daquilo que considero ser a esfera da decisão de um governo e a da gestão de uma organização do Estado, dou o seguinte exemplo na área da Saúde e no regime constitucional de um país como Portugal:
- Presidência da República (PR): Conhecer e fazer sentir as aspirações e necessidades dos portugueses e pedir ao Governo da República em matéria de Saúde medidas com objetivos claros, para serem acompanhados anualmente pela Assembleia da República (AR).
- Primeiro Ministro (PM): Propôr um valor objetivo no aumento dos indicadores de saúde dos portugueses e do índice de sustentabilidade do SNS, como um compromisso firme de todo o Governo e pedir aos Ministros da Saúde e das Finanças para co-criarem um plano plurianual com medidas e propostas de Orçamento de Estado (OE) para propor à AR.
- Ministro da Saúde: Co-criar com a equipa de gestão profissional do SNS (um hipotético Conselho de Administração do SNS) os instrumentos de gestão, indicadores de atividade e resultados a alcançar, acompanhando a sua execução com as principais agências reguladoras (INFARMED, DGS, ERS, SPMS) e representantes do sector privado e social, criando uma visão e atuação sistêmica no país que permita as necessárias correções para alcançar os objetivos propostos pelo Governo.
- Conselho de Administração do SNS Sociedade Gestora (órgão a ser criado na próxima legislatura): Co-criar com cada organização prestadora de saúde na sua dependência directa um plano de gestão plurianual para execução com plena autonomia de gestão nos âmbitos regionais e locais.
- Gestores das organizações de saúde: Co-criar com os seus profissionais e com a comunidade envolvente um plano plurianual de saúde com indicadores claros e que é proposto ao gestor do SNS para aprovação com a total autonomia de execução.
O despertar de um Sonho
Pode ser que este modelo de articulação entre a esfera do Governo e a esfera da Gestão, que acabo de descrever mais acima, seja um sonho difícil de alcançar? Mas estou convencido que foi este o sonho de alguns dos fundadores do SNS há 40 anos atrás e para que se possa concretizar temos que concretizar um sonho ainda maior.
Para que a autonomia de gestão nas organizações do Estado seja eficaz deverá existir uma profunda reforma do estatuto da Função Pública, em que as carreiras sejam atraentes, com progressões justas e financeiramente atrativas para reter o melhor capital humano e permitir que toda a Administração Pública seja ela própria no seu conjunto (incluido o SNS), um motor de desenvolvimento do próprio país.
Sem querer estar a condicionar o debate, serão estas e muitas outras as questões que serão objeto de reflexão na iniciativa SNS 4 Décadas de Sucesso e no Think Tank – O Despertar de um Sonho que irei moderar no próximo dia 15 de Outubro.
Pretendemos estimular o debate e a ação sobre o papel que a sociedade civil e o sector privado poderão desempenhar para um SNS moderno e inovador onde a co-produção de saúde seja uma realidade. Lord Nigel Crisp (ex-CEO do NHS) e um grande amigo de Portugal, oferecerá uma palestra inaugural aos membros deste Think Tank.
Agenda ao rubro em Outubro
Possivelmente pela pausa estival em Agosto, a maioria dos eventos em Portugal recupera a sua dinâmica habitual após o verão e irão decorrer neste mês de eleições legislativas em Portugal:
- Dia 3 de Outubro: HINTT Health Intelligent Talks and Trends, trata-se de um evento anual subordinado à área da Saúde, com a Fundação Champalimaud como palco das primeiras edições, em outubro de 2017 e em 2018 contou com 14 oradores e 800 assistentes e é organizado pela Glintt.
- Dia 15 de Outubro: Think Tank – O Despertar de um Sonho trata-se de um evento fechado no qual a participação é realizada apenas por convite, que reúne um grupo de 50 gestores saúde e especialistas convidados. Este think tank, think factory ou laboratório de ideias é uma co-organização do Fórum Hospital do Futuro e da Quidgest, em conjunto com a Microsoft, Claranet, Sectra, Saphety e Devscope.
- Dia 22 de Outubro: Os desafios atuais do setor da saúde vão ser debatidos, no Centro Cultural de Belém, onde vai decorrer a 4.ª edição do C-Health Congress. C-Health é um evento corporativo de inscrições pagas dirigidas aos profissionais do sector da saúde.
PS: Anime o debate
Devido à época estival que é aproveitada pelos nossos subscritores para um merecido período de férias, este mês não será distribuída a e-news do Fórum Hospital do Futuro. Em anos anteriores verificámos que é demasiado elevado o número de respostas “Estou ausente do escritório” e decidimos fazer aqui uma pausa, com os devidos pedidos de desculpa aos nossos leitores no hemisfério sul.
Se, por casualidade, acabou de ler este artigo e achou interessante, PF divulgue-o nas redes sociais e anime o debate: será ou não útil uma sociedade gestora para o conjunto do SNS em Portugal? Qual a coragem que falta para realizar uma reforma transformadora da Função Pública em Portugal?