Já se sabe e sempre foi assim. Começou uma nova legislatura e não falta quem lance o pregão à rua a clamar por mais atenção para o SNS em Portugal, mais recursos, mais investimento. Como se os recursos financeiros fossem uma varinha mágica, a solução para todos os problemas.
Mas se os fundadores do SNS que sonharam a criação deste serviço há 40 ano atrás despertassem hoje, o que é que diriam? Seguramente estariam muito orgulhosos de tudo aquilo que foi conseguido. Este deverá ser o nosso ponto de partida. Construir sobre o que já funciona e está a dar resposta, aprender com os erros e corrigir o que ainda precisa de ser feito.
Três falácias sobre o SNS português
Seguramente existiram outras quando se falar do SUS no Brasil ou dos serviços de saúde de outros países de língua oficial portuguesa, mas em Portugal estas são as minhas favoritas:
- Pensar que o SNS é um problema político. Após as recentes eleições fica claro que se a saúde fosse um problema, um povo soberano num regime democrático não expressaria os seus votos de forma tão contundente nos partidos cuja coligação governou nos últimos 4 anos. Tal como os fundadores do SNS se dariam conta, a Saúde dos portugueses tem vindo a melhorar e estes constatam melhorias substanciais como a prescrição de receitas sem papel e o acesso digital à informação que são reconhecidamente úteis e mostram que há um esforço bem sucedido por parte do Estado português por detrás. Isto não significa que não existam questões políticas de fundo importantes mas simplesmente que a recente lei de bases da saúde e o arco parlamentar resultante destas eleições dizem-nos que o povo falou e agora há que passar página.
- Falar no SNS como um todo que padece de graves problemas. O SNS não é um todo, ele é multifacetado e existem amplos segmentos da população portuguesa que estão muito bem atendidos e servidos. Existem sim focos localizados onde ocorrem problemas com diferentes tipos de gravidade, como exemplo, o caso das urgências no Hospital Garcia de Orta, ou a Ala Pediátrica do Hospital de São João. Mas é um erro confundir o todo pelas suas partes. Por cada “problema” encontrado no SNS, encontraremos igualmente um ou mais casos de sucesso tal é a sua natureza multifacetada. Como exemplo, o mesmo hospital de São João, onde a ala pediátrica funciona em contentores, venceu a edição de 2019 do prémio HINTT, na categoria de “Value Proposition” com o projeto Digital Patient.
- Pensar um SNS ‘ideológico’ como um instrumento de combate às desigualdades e de reforço da coesão social. Este é claramente um desígnio muito nobre e que deveria ser uma prioridade de todo o Governo ou até do Estado no seu conjunto (ver aqui o meu editorial anterior), mas que sai claramente do âmbito da missão do SNS que é o de prestar uma ampla carteira de serviços (a maior que lhe seja possível) e com a máxima qualidade aos seus utentes.
A urgente geração de confiança mútua
Mas enquanto os argumentos baseado nestas falácias podem ser relativamente inócuos em relação ao SNS, muito pior é a utilização do espaço mediático que é concedido aos problemas da saúde para ‘fins egoístas’ por parte dos chamados lobbies ou grupos de pressão. A luta pela melhoria de salários e condições de trabalho pelos sindicatos, da redução de dívida e melhores condições de pagamento por parte dos fornecedores, ou a reivindicação de mais investimento por parte dos prestadores.
No entanto, este ‘egoísmo’ emerge quando existe desconfiança sobre o modo como é exercida a governação do sistema. E esta desconfiança ocorre no seio do próprio governo que realiza um evidente esforço de contenção do gasto público em saúde nos últimos anos.
Tal como o próprio programa de governo estípula, é fundamental melhorar as condições de governação da saúde e isso passa obrigatoriamente pela geração de confiança entre os principais actores envolvidos na mesma.
Grandes convenções nacionais e congressos que se convertem em enormes caixas de ressonância das principais queixas de todo o setor, talvez não sejam o mais apropriado para gerar a confiança mútua entre todos os atores (governo e sociedade civil) tão necessária a um diálogo construtivo gerador de soluções.
Mas independentemente da sua forma, toda esta ampla variedade de eventos no sector da Saúde – As conferências de Valor da APAH, o ciclo de conferências a Oeste do Fórum Saúde para o século XXI, a próxima Convenção Nacional de Saúde, a X conferência anual do Healthcluster Portugal, e as Conferências no Feminino da APDH, pela sua diversidade e riqueza de conteúdos, são um sinal de vitalidade da sociedade civil a bem de Portugal.
Da reivindicação à co-criação de soluções
Sem querer ‘varrer para dentro’, tal como os nossos vizinhos espanhóis se referem quando alguém se auto-valoriza, identifico duas iniciativas diferenciadoras nesta passada semana: a Conferência “Connected Healthcare” da COTEC Portugal e o Think Tank “O despertar de um Sonho” no âmbito da iniciativa SNS 4 Décadas de Sucesso, que tive a honra de moderar.
No primeiro caso, da COTEC, foi adoptada uma metodologia de Estudo de Caso para demonstrar como a transformação do ecossistema de saúde, através das tecnologias digitais, pode ter impactos tangíveis e mensuráveis.
No segundo caso convidámos e reunimos um conjunto de líderes de pensamento e especialistas de diversas organizações sectoriais para co-criar um conjunto de ideias e recomendações para serem implementadas no marco da governação que nos oferece esta nova legislatura e o marco consultivo da estratégia nacional de saúde digital – ENESIS 2020.
Esta é a diferença que queremos manter no desenho de eventos com um propósito de co-geração de ideias e propostas de soluções participadas por todos os atores implicados e que possam, por isso, ter uma aplicabilidade prática.
Os nossos próximos passos têm que ver com a consolidação deste ecossistema do eHealth (Saúde Digital) em Portugal e o desenvolvimento de uma estratégia colaborativa (estado-privados) para a sua crescente expansão internacional.