À medida que o verão avança e aos poucos passamos a receber amigos em casa tive há dias um jantar de família encantador com amigos que não via há anos.
Falamos de tudo um pouco e, como não podia deixar de ser, também da COVID19. Neste caso a conversa fluía para as experiências vividas por este casal amigo e a sua filha mais nova, infetada e em muito mal estado.
Sim, é um erro colossal pensar em generalizações como ‘as crianças são assintomáticas, apenas sofrem com a doença’ porque não é verdade. Pior ainda quando se trata de profissionais de saúde que peço por favor considerem que a COVID19 é como enfrentar um ser extra-terrestre, não tomem nada nunca como certo.
Foi aqui o caso desta filha mais nova dos meus amigos que atacada com durísimos sintomas e mal estar, foi lhe pedido para se deslocar a uma ADR (Áreas Dedicadas aos Doentes Respiratórios) mas cujo encaminhamento é feito pelo SNS 24 e isso nem sempre funciona. Este foi um desses casos.
Cheia de febre e dores a criança desloca-se e a médica recusou-se a atender pois não tinha recebido a notificação. A minha amiga dizia, “mas está aqui no meu SMS recebi a mensagem para vir para cá.”
Regressa a casa e voltam a ligar do SNS 24, mas por favor vá lá outra vez.
De novo, voltar a vestir e sair para a rua, com dores e febre, e mais uma vez, “não temos cá nada” e a médica assim não pode atender. Em desespero os instintos maternais devem ter dado lugar a um semblante mais assertivo “mas vamos lá ver, que espécie de organização é esta que já fizeram com que a minha filha doente tenha vindo aqui duas vezes em vão??”
Uma enfermeira, por fim, compreendeu a gravidade do estado da criança e lá se realizou a consulta, finalmente.
Uma questão de ética profissional?
Não quero tirar daqui as conclusões erradas e baseadas em julgamentos precipitados.
Desde logo uma questão de ordem ética. Um contraste gritante com o apelo agradecido do Cardeal Tolentino de Mendonça à dedicação extrema dos profissionais de saúde nesta luta contra a COVID19, no meu anterior editorial aqui.
Este caso não deveria ser o normal. Qualquer profissional de saúde que exerce, fá-lo por acreditar nos valores humanitários de preservar vidas e reduzir o sofrimento, em prioridade de quaisquer outros. Não se pode recusar uma consulta a alguém doente, uma observação pelo menos, um sorriso, um aconchegar a roupa da criança “és uma valente”, o reencaminhar para alguém que possa dar resposta.
Muito triste que esta ética de dedicação amorosa e abegnada se possa perder num contexto dramático da luta conta a COVID19 e as suas novas variantes. Para vencer esta guerra é também disso que precisamos.
Espero que este seja apenas um caso isolado.
Combater a doença organizacional
Mas durante este jantar de amigos, não foi. Todos apresentaram os episódios mais caricatos de falhas de organização em serviços de saúde públicos, mas também algum caso nos privados.
Por exemplo, dentro de um Centro de Saúde, o funcionário numa mesa de atendimento não sabe do assunto que é tratado na mesa ao lado, os sistemas não comunicam e o tão frequente ‘isso já não é comigo’ como se estivessem em planetas diferentes. Caramba, não são ambos colegas que trabalham na mesma organização?
Se hoje já estamos conscientes que a COVID19 veio para ficar e que após a Delta, outras variantes irão chegar, temos que nos compenetrar que para um SNS mais resiliente precisamos de uma organização sólida, robusta, mas sobretudo saudável em todos os aspetos.
Sem síndrome de Burnout, ou síndrome do desgaste profissional.
Acabando com os silos e fomentando o trabalho em equipa.
Remunerar de forma justa e generosa os seus profissionais, premiando a sua dedicação e sentido ético.
Mas sobretudo, capacitar os seus líderes para que possam aprender a liderar de forma saudável.
Não se pode combater a doença ou preservar a saúde com organizações doentes.
Não podemos baixar os braços e deixar que se instale no seio de qualquer organização de saúde a doença da desorganização.
Vamos a isso?
Nesta coluna de opinião, jamais farei uma crítica sem que apresente igualmente uma solução.
A saúde precisa de lideranças que saibam como gerar reconhecimento e satisfação com o trabalho e que este possa contribuir para um sentido de realização e crescimento pessoal.
Aproveitando o acerto que foi a nomeação de uma equipa liderada por militares para a gestão da vacinação anti-COVID19 em Portugal, poderíamos tentar aprender mais sobre a forma de organização militar para poder aplicá-la também no SNS ou no SUS.
Uma nota prévia para salvaguardar conflitos de interesses. Eu próprio sou um ex-oficial miliciano do Exército português na reserva territorial. O meu primeiro emprego, antes mesmo de terminar o curso, foi como militar. Na altura tínhamos o serviço militar obrigatório e após a minha recruta na EPAM Escola Prática de Administração Militar, exerci funções em várias unidades e no próprio Estado Maior do Exército, como alferes contratado.
Mas sejamos práticos, quais os princípios de organização militar que podem realmente interessar a um serivço nacional de saúde? Para dar uma resposta completa precisaríamos de muito mais que o espaço que tenho neste editorial.
Posso destacar apenas a ideia do ‘oficial de dia’, que usei no título mais acima.
Evitar vazios de decisão
Para atacar problemas como este caso de um ADR sem liderança, poderia ser criado em todas as unidades de saúde o cargo de ‘oficial de dia’.
Mais que uma função, trata-se de definir um papel organizacional que poderá ser exercido por qualquer profissional que tenha uma formação própria e as necessárias aptidões de liderança. Poderá ser um administrativo, enfermeiro ou médico desde que tenha esta preparação específica e reconhecida por sindicatos e ordens profissionais.
Tal como em qualquer unidade militar, esse profissional saberá que no exercício dessa função (que é rotativa e repartida por todos os profissionais com esta qualificação) estará apenas a custodiar a cadeia de comando. Durante o dia poderá fazer de enlace rápido com quem está presente para tomar decisões e, fora do horário, poderá agir como comandante da unidade sempre que necessário.
Neste caso, perante a chegada ao ADR de uma criança com um erro na notificação do SNS24, o Oficial de Dia poderia dar a indicação para ser atendida e escalaria imediatamente o problema ao Oficial de Dia do SNS 24 para resolver a incidência e assim sucessivamente até que o problema seja definitivamente resolvido.
Tal como numa organização militar, um serviço nacional de saúde deverá estar operacional, sem qualquer vazio de decisão, durante as 24 horas do dia e mais ainda numa situação de pandemia que sabemos hoje se irá prolongar no tempo.
Em Portugal, por exemplo, uma parceria entre o IUM, o antigo Instituto de Altos Estudos Militares português e outras entidades idóneas como a AESE, a APAH, ou o qualquer outra escola de liderança em saúde, poderiam gerir uma “Task Force” para que sejam formados, de modo voluntário, todos os profissionais com aptidões de liderança para exercer as funções de ‘oficial de dia’ em serviços de saúde.
Agora em sério
Foram, possivelmente, os primeiros impérios na história da humanidade como os Mongóis quem descobriu o poder da organização militar como uma fortíssima arma que usaram para conquistar e expandir os seus territórios. Mais tarde aperfeiçoada pelos Romanos e as suas centúrias que mantiveram um dos mais longevos impérios na história. Para não falar nos exércitos da Alemanha de Hitler ou do Japão e das suas derrotas, tudo graças ao engenho e inteligência aplicados pela organização militar.
Sabemos hoje que os princípios da organização e liderança são indispensáveis para o sucesso em qualquer contexto militar e que o digam os comandantes Talibãs com os resultados obtidos pela falta de preparação do exército Afegão.
Deveremos refletir igualmente sobre o modo como a organização e a liderança podem ser usadas como uma arma também em Saúde.
A exitosa experiência da Task Force de vacinação em Portugal liderada por militares pode trazer muita aprendizagem organizacional que não deveria ser desaproveitada.
Os princípios de criação de ADRs que se destinam à avaliação clínica dos doentes com suspeita de infeção respiratória aguda que necessitem de observação médica presencial e a sua referenciação pelo SNS 24 são excelentes ideias, mas não podemos deixar que falhem depois na execução.
Num estado de guerra permanente contra um coronavírus rebelde e persistente, a organização e a liderança são armas poderosas que podem fazer toda a diferença em qualquer tipo de combate, militar ou em saúde.
Post Scriptum
Quando termino de escrever este artigo um colega da IAF Associação Internacional de Facilitadores partilhou este artigo da Forbes que não resisto em partilhar de novo:
Sem dúvida que em Saúde, a multidisciplinaridade da grande maioria das atuações requer trabalho em equipe e líderes facilitadores e pelo emprego da facilitação de grupos na tomada de decisão, sobretudo nas mais críticas.
Perdoem-me a auto publicadade…
“Arquitetar a Colaboração” é o título de uma série de livros dedicados à facilitação de grupos, seus princípios, métodos e técnicas, que podem ser aplicados essencialmente em duas áreas:
- Por um lado, no âmbito da gestão, para obter resultados mais eficazes com o trabalho em grupo nas organizações – os líderes facilitadores sabem como criar e dirigir equipes de alta performance (ver volume 1).
- Mas, também, no âmbito da consultoria, para intervir mais eficazmente com a ‘facilitação de grupos’ e entregar um serviço de qualidade, nos diversos setores empresariais e sócio-comunitários (este 2º volume).