Vivemos dias que nos confrontam com uma realidade que é cada vez mais pós-VUCA (Volátil, Incerta, Complexa e Ambígua) e que agora se designa por BANI, uma nova sigla que significa B (do inglês Brittle) = Frágil, a ideia é que estamos suscetíveis a uma catástrofe a qualquer momento, A = Ansioso, N = Não linear: vivemos num mundo cujos acontecimentos parecem desconexos e desproporcionais; e I = Incompreensível: temos que entender que deixamos de conseguir ter a compreensão e o controle de tudo.
É esta complexa teia de desafios e dilemas que também permeia o nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) onde podemos observar diversas realidades aparentemente contraditórias e que pedem a nossa atenção e reflexão.
De um lado, pudemos assistir, recentemente, à trágica morte de um paciente de 93 anos que aguardava atendimento nas congestionadas urgências do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, aparentemente devido a uma excessiva espera na ambulância.
Mas podemos contrastar esta realidade com o do caso da bébé Matilde, diagnosticada com Atrofia Muscular Espinal Tipo I e o esforço financeiro significativo do SNS para investir um milhão de euros no seu tratamento.
É óbvio que estamos a falar do mesmo SNS que foi criado e é hoje gerido a pensar na preservação de todas as vidas humanas, sem distinção, mas é nítida a dissonância entre estas duas realidades.
Enquanto se mobilizaram recursos consideráveis para salvar a vida da bebé Matilde, o paciente idoso faleceu enquanto aguardava assistência médica. Esta dissonância não pode ser descurada, pois lança uma luz crua sobre as complexas decisões que os líderes do SNS enfrentam diariamente. A liderança desempenha um papel crucial na definição de prioridades, na alocação de recursos e na criação de um ambiente onde cada vida seja valorizada e cuidada.
Para compreender o cerne desta contradição, é necessário reconhecer a dificuldade inerente na tomada de decisões no contexto da saúde. Como sociedade, enfrentamos escolhas desafiantes sobre onde direcionar os nossos recursos limitados. A bebé Matilde ilustra a busca por soluções para condições médicas raras e devastadoras, enquanto a morte do paciente de 93 anos ressalta a urgência em garantir que os sistemas de saúde sejam acessíveis e eficientes para todas as faixas etárias.
A liderança no SNS tem um papel fundamental em conciliar estes interesses aparentemente divergentes. A análise criteriosa de cada caso, a revisão das políticas e a implementação de processos que permitam ajustes ágeis são atributos cruciais que uma liderança eficaz deve possuir. Além disso, a transparência nas decisões e a comunicação clara sobre as prioridades do sistema são imperativos para promover a confiança do público e dos profissionais de saúde.
Paralelismo com a aviação
A escolha deste exemplo do porta-aviões USS Gerald R. Ford, o maior do mundo, pode dar-nos o mote para uma comparação com o setor da saúde. Este paralelismo entre a indústria da aviação e o SNS pode oferecer lições valiosas para a gestão do nosso sistema de saúde.
Na aviação, a investigação cuidadosa de cada acidente permitiu a identificação de causas profundas, que muitas vezes ultrapassam o incidente isolado. Esta abordagem, focada na análise de sistemas em vez de procurar culpados individuais, contribuiu para uma melhoria contínua da segurança e eficiência.
No contexto do SNS, a sua gestão executiva pode adotar uma abordagem semelhante e as suas conclusões devem transcender o âmbito desta ocorrência num hospital do SNS e serem igualmente válidas para todos os restantes hospitais no sistema de Saúde, com o envolvimento da Entidade Reguladora da Saúde e da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), felizmente o nosso país dispõe de instituições idóneas para este efeito.
É importante que se estabeleça um processo sistemático e aberto de investigação de incidentes críticos. Em vez de apontar dedos, o foco deve estar em compreender as falhas nos processos, os estrangulamentos e as insuficiências que contribuíram para o incidente. Isto exige um ambiente onde os profissionais de saúde se sintam à vontade para reportar problemas, sem receio de retaliação, permitindo que se aprenda com cada erro.
Aqui estão algumas recomendações que as várias autoridades do SNS que investigam este trágico acontecimento podem considerar:
- Criação de Painéis de Investigação: Estabelecer painéis independentes de especialistas para analisar incidentes críticos e identificar as causas fundamentais.
- Enfase em Sistemas, Não em Indivíduos: Evitar a procura de culpados individuais e concentrar-se na análise de falhas sistémicas que permitiram o incidente.
- Transparência e Partilha de Resultados: Disponibilizar amplamente os resultados das investigações a profissionais de saúde, pacientes e público em geral, promovendo um ambiente de aprendizagem coletiva.
- Implementação de Mudanças Significativas: Utilizar as conclusões das investigações para implementar alterações concretas nos processos, protocolos e formação.
- Criação de Canais de Comunicação Seguros: Estabelecer canais seguros para que os profissionais de saúde possam reportar problemas sem receio de represálias.
- Aprendizagem Contínua: Promover uma cultura de aprendizagem constante, em que os profissionais de saúde partilhem experiências e lições aprendidas com o objetivo de melhorar os cuidados.
À medida que observamos a indústria da aviação como um modelo de aprendizagem contínua, torna-se claro que a gestão do SNS pode retirar insights valiosos para melhorar a segurança e a eficácia dos cuidados de saúde que são prestados diariamente. Incorporar uma abordagem centrada em sistemas e uma cultura de aprendizagem pode conduzir a um SNS mais resiliente, capaz de aprender com erros passados para evitar tragédias futuras.
Conclusão
Ao navegar por mares complexos, é essencial manter uma postura de humildade, reconhecer os erros e procurar uma abordagem de aprendizagem contínua. A análise aprofundada dos eventos, a busca por soluções inovadoras e a compreensão empática das necessidades dos profissionais e das populações que servem são elementos que podem orientar o SNS na direção de um futuro mais robusto e eficaz.
Com isto em mente, o 2º plenário do THINK TANK SNS de Contas Certas no próximo dia 28 de setembro na cidade do Porto, convida à reflexão sobre a intersecção entre a contradição aparente destes eventos e o papel central da liderança no SNS. Esta reflexão não busca respostas definitivas, mas sim promover um diálogo construtivo sobre como moldar um sistema de saúde que verdadeiramente sirva a todos os cidadãos, independentemente da idade ou condição.
Nesta ocasião, diversos especialistas, profissionais de saúde, gestores e académicos irão estar reunidos para abordar o tema da acessibilidade ao sistema de saúde, entre outras questões cuja relevância é escolhida pelos próprios participantes.
Juntos, podemos construir um SNS mais resiliente, acessível e capaz de servir as necessidades de todos os cidadãos e mantendo as contas certas.